Minha querida Nicole

Desde crianças brincávamos juntos. Ela sempre afável tinha um carinho especial por mim. E eu nutria por ela um carinho maior ainda. Tínhamos a mesma idade. Enquanto os irmãozinhos dela jogavam futebol, eu ficava junto a ela sentado à beira do campo segurando sua frágil mãozinha. Sempre branquinha e singela precisava de constantes cuidados médicos. Às vezes morava mais no hospital do que em casa. Quando voltava era eu que repassava as lições da escola. E gostava muito de estudar com a Nicole. No fim da tarde ela espalhava seus ursinhos de pelúcia por todo quarto e ficávamos horas brincando com aquelas criaturinhas tão fofas.
Na medida em que crescíamos trocávamos os ursos por passeios na pracinha. E ela ficava cada vez mais franzina e precisava de cuidados constantes. Não dispensava a sua sombrinha rosa para não pegar sol. O mínimo já era motivo para lhe deixar de cama uma tarde inteira. Nicole sempre fora delicada e tinha uma saúde instável.
Quando ela fez treze anos trocamos pela primeira vez uma carta de amor. Era um amor singelo e ingênuo e eu tinha por ela muito apego.Não sei dizer ao certo o motivo deste apego. Talvez eu gostasse dela por ser tão singela e frágil e isto me despertou um sentimento de proteção. Depois de um tempo nossos passeios no bosque foram cessando devido ao cansaço que isso lhe causava. Os irmãos dela, bem mais velhos que nós, começaram algum tipo de marcação e não deixavam que eu ficasse com ela por mais tempo.
No aniversário de seus quinze anos ela fez questão que eu fosse o primeiro a dançar a valsa. Os olhos dela eram tão serenos que não resisti. Depois da festa trocamos o primeiro beijo e juramos amor eterno. Ela estava tão magrinha e fraca que me causou uma comoção profunda. Nicole tinha uma voz tão doce e tudo que ela falava era belo e generoso. Depois do beijo e das juras de amor fizemos planos para o futuro. Embora o nosso futuro fosse incerto, eu tinha certeza que ela mudaria muita coisa em minha vida. Éramos tão jovens, mesmo assim arcamos com uma responsabilidade imensa.
No fim da festa ela fez questão de ficar um pouco mais comigo e só foi para o quarto descansar depois das dez da noite. Os irmãos dela estavam sempre por perto nos vigiando.
Noutro dia abri a minha janela e vi uma ambulância saindo da casa de Nicole. Corri para saber o que havia acontecido e disseram que ela fora às pressas para o hospital. Ficou dois dias lá e voltou ainda mais fraca e branca. Alguns amigos se reuniram e fizeram uma visita a ela. Quando entrei no quarto ela me procurou com os olhos e me olhou com tristeza. Os ursinhos estavam todos em fila ao redor de sua cama de princesa. Era o prenúncio de uma despedida. Quando todos saíram eu fiquei mais um pouco para tentar amenizar a dor que ela sentia. Ela nada disse. Puxou uma caixinha de papelão ornada com papel picado e tirou um anel que estava escondido no fundo. Com as mãos trêmulas me entregou o objeto e disse em voz baixa que iria me amar para sempre. Eu a abracei e logo em seguida tive que sair para ela descansar. Contemplei seus lindos olhos brilhantes e me despedi. Havia naquela cena uma comoção que me tomou por completo. Como se aquela despedida fosse definitiva.
Noutro dia veio a notícia que chocou todo o bairro. Nicole morreu naquela noite. Depois do meio dia trouxeram o caixão, branquinho feito a seda, para levar o corpo dela. Com lágrimas nos olhos vi seu rostinho doce e rosado no seu velório. E levaram aquela criaturinha tão meiga que tanto me amou e que marcou a minha vida.

Mariazinha

Na sala com um retrato nas mãos...

Marido ignóbil – Tão pura

Mulher – doce – Cristalina

Maridopétreo – Ingênua

Mulher para si mesma – Imaculada

Marido deslumbrado – Um anjo

Mulher incerta – Uma flor

Marido num sonho – Digna de carregar o próprio Cristo no ventre

Mulher condenando – Daria à luz virgem, virgem!

Marido taciturno – Tão doce

Mulher desapontada – Não conhece os pecados do mundo

Marido num relapso – Serena

Mulher num suspiro – Cheia de vida

Marido num lamento – Uma menina

Mulher acusadora – Uma mulher

Marido surpreso – Nossa filha

Mulher veemente – Nosso fruto

Marido protetor – Intocável pela maldade da serpente

Mulher enamorada – Feita de amor

Marido apaixonado – Do nosso amor

Mulher ávida – Um amor sequioso

Marido triunfante – Desejado

Mulher Espantada – Instintivo

Marido excitado – Arrebatador

Mulher aturdida – Louco

Marido num grito – Louco!

Mulher desapontada – Violado

Marido colérico – Violento!

Mulher retraída – Incauto

Marido num sorriso – Nasceu Maria

Mulher distante – Mariazinha...

Marido doce – Cresceu

Mulher num desespero – Se tornou mulher

Marido num desejo – Nossa Mariazinha

Mulher num alívio – Tão meiga

Marido cabisbaixo – Inocente

Mulher acusadora – Reclusa dentro de si

Marido desapontado – Não arde em chamas

Mulher num remorso – Não peca

Marido atônito – Não tem maldade

Mulherpensativa – Tão santa

Maridopreocupado – Distante dos amores da vida

Mulhernum suspiro – Mariazinha

Maridomalicioso – Inviolada

Mulhertriste – Desnuda dos prazeres carnais...

Num quarto mais adiante...

Mariazinhano telefone – É do setor de anúncios?

Atendente num ato – Sim

Mariazinhanum suspense – Bate aí... taxativa – Maria ninfeta cheirosinha. Liberal e quente. Sedenta por sexo. Adora anal e beijo na boca...

Por trás daquela calcinha


Bateu os olhos em cima da moça e Rogerinho se encantou profundamente. Amor à primeira vista. Foi uma flechada certeira do cupido. Bem no meio de seu coraçãozinho apaixonado. Não enxergou mais nada naquela boate. Nem mesmo a música de corno de Reginaldo Rossi lhe machucava os tímpanos. Não viu o vômito de um beberrão ao seu lado e flutuou por cima. Estava do outro lado do salão. Mas só tinha olhos para ela. Distante. A musa encostada no balcão. Um sonho. A deusa grega que desce do Olimpo para copular com os homens. Meros mortais. Para chegar do outro lado era tão difícil quanto um parto. Não importava. Para o amor tudo é possível. O caminho de pedras perigosas. Nada disto o faria parar. Estava hipnotizado. Sonâmbulo. Atravessaria o deserto mais quente por ela. O ambiente mais hostil. Pessoas se acotovelavam. Beijavam-se. Tinham orgasmos no meio do salão. Formavam túneis. Vendavais de piruetas. Um bailar de Macarena. E nada disto fazia Rogerinho se intimidar. Ela esta lá.  A jovem do balcão. Linda e envolvente era seu único objetivo naquela noite. O escopo de sua flecha. A mulher que pediu a Deus em muitas de suas orações, ajoelhado ao lado do pinico. Debulhando um velho rosário que era de sua avó carola. E seguiu ele. Firme em seu propósito. Para conquistar a fêmea. Levar para casa arrastada pelos cabelos. O poder de um macho dominante corria por suas veias. Apesar de seus braços franzinos reduzidos a ossos e tutano. Enfim o caminho percorrido. A vitória quase certa. Poucos metros entre o balcão e ele. Poucos minutos para a conquista. Poucas horas entre ela e a cama. O primeiro passo foi fácil. Haviam muitos outros a serem percorridos. O desejo era avassalador. O medo palpitava incessante. A dúvida lhe corroía por dentro. Um minuto apenas bastava para que outro macho se aproximasse. Era uma corrida contra o tempo. O desafio constante. O frio na barriga que poderia pôr tudo a perder. E todos aqueles pensamentos de uma mente irrequieta. Estou tão perto. Dizia. Tão perto. Repetia. Tão perto. Não se conteve. Encostou-se a ela. Encouchou a fêmea. Sentiu o perfume de seus cabelos. Tão macios. Tão artificiais. Eram lindos. Vindos de um laboratório. Perfeitos. E eram naturais. Lisos. E seguiam até as nádegas. Contornavam as curvas do corpo. E terminavam todos juntos. Alinhados e cheirosos. Ela sentiu a respiração dele. E Rogerinho nas nuvens não a viu quando ela se virou para ele. De repente o susto. A surpresa alucinante. Os olhos verdes. Cílios postiços. Sobrancelhas aparadas. Nariz torneado pelas mãos de Deus. Dentes brancos. Branquíssimos. Lábios carnudos. Furinho no queixo. Covinhas nas bochechas. Mais em baixo os peitos redondos. Durinhos. Siliconados. Barriguinha tanquinho. Pernas torneadas. A oitava maravilha. Para Rogerinho a primeira. Num momento quis trepar ali mesmo. Não acreditou que ela estava sozinha. O esperando. Quis assim o destino. Os desígnios. O acaso. O que for. Ninguém mais a tirava dos braços. Partiu para a conquista. Literalmente apossou-se. Pediu o uísque. Dois copos. Ela aceitou. Um Single Malt com duas pedras de gelo. Foi fácil. Até demais. Não importa. Sou muito homem. Pensou ele. Homem até demais. Repetiu. E com seus braços delgados agarrou a moça. Era dele. Só dele. Ninguém mais a tiraria. Nem mesmo o mais forte. Gladiaria por ela. Enfrentava todas as feras. O leão. O tigre e o lince. Entre o balcão e toda aquela gente não titubeou. Sem tomar conhecimento da situação agarrou a moça e a beijou. Foi a Paris e voltou. Jogou-se da torre Eiffel e caiu no paraíso. Nos braços da mais bela ninfa. Que beijo. Cinematográfico. Quente. Úmido. Apaixonado. As línguas se entrelaçaram. E fizeram o nó do amor. Firme. Irretorquível. Cego. Cego. Pegou nas mãos dela. Tão delicada. Tão feminina e pálida. Sem anel. Sem compromisso. Era só dele. De Rogerinho. O macho alfa. Imponente. O melhor daquela boate. E a puxou daquele balcão. Tirou a moça dali. Em meio a tantos olhares maldosos. Desejosos. Sedentos. Tateou a multidão. Abriu espaço entre os corpos. Um túnel se formou para o casal passar. Foi novelesco. Quixotesco. Sublime. Rogerinho estava resoluto. Poucas palavras. Olhares que diziam tudo. Ela o aceitou. Foi arrematada por um sentimento maior. Nem mesmo os sentidos puderam sentenciar a ilusão. Foi da alma. De vidas passadas. Perpassadas pelo fio da ventura. Tateou ele o que restava em sua carteira. Algumas moedas. Que se dane o táxi. Foram de ônibus. Que importa a viagem. A casa é perto. O quarto é quente. O pinico estava bem escondido em baixo da cama. Subiram com calma. Cada degrau. O motorista olhou para a moça. Fascinado. O cobrador ficou excitado. Rogerinho sentiu ciúmes. Eivou-se com um sentimento torpe. Possessivo. Grotesco. Agarrou com mais força a cinturinha fina de sua amada. Entregou as moedas e não quis o troco. Foi para os últimos bancos. Mais um beijo. O amasso inicial. Sentiu a pele. O peito dela roçar no seu. Quase teve um orgasmo. Mal começou e já desceram do ônibus. Poucas quadras. Abriu a porta com calma. Nem um ranger de dobradiças. Pé por pé entrou em casa. Sua avó roncava no quarto ao lado. A janta estava no fogão. Fria. Assim como o ambiente. Arrumou o lençol de sua cama de solteiro. A sua amada consentiu. Deitaram. Ele por cima dela. Não havia muito espaço. Quanto desejo. O fogo que queimava. Aquela mulher tão linda. Ali junto a ele. Um sonho. Tirou-lhe o tomara-que-caia. Chupou os bicos dos seios. Estavam a ponto de explodir. Ele e ela. Ela e ele. Num ardor infernal. Delicioso. Majestoso. Rogerinho não se conteve. Quis lamber o clitóris da moça para lhe fazer um agrado. Meteu a mão na boceta em chamas. A olhou fixamente. Não acreditou no que sentiu. Meteu a mão de novo para ter certeza. Deu um grito fino. Desesperado. Aturdido. Desconsolado. E descobriu que por trás daquela calcinha havia um pênis ereto e rígido pronto para lhe penetrar...

Um suicida com TOC

Roberval tinha cara de viado. Tinha jeito de viado. E se comportava como um viado. Mas ele não era viado. Ele tinha TOC. O transtorno começou quando ele ainda era moleque. Não brincava na areia, não matava passarinho, não sentava no banco da praça e não tocava em nada que pudesse sujar suas mãos limpas e livres de bactérias. E ele era tão fresco que só beijou a primeira namorada depois que ela escovasse os dentes pelo menos umas cinco vezes. Mesmo assim não poderiam trocar salivas e nem pensar encostar uma língua na outra. Depois de uma semana com este ritual rigoroso a pobre coitada dispensou o rapaz asseado. Dizia ela que o ser humano não poderia viver para sempre isento de qualquer sujidade. Outras particularidades, devido a sua obsessão compulsiva, delineavam a sua personalidade para um comportamento misantropo. E sentia ele uma aversão mórbida de tudo que viesse da rua. Até mesmo pelo carteiro. Antes de pegar as cartas que acumulavam embaixo da porta, passavam elas por um processo de higienização. Das poucas vezes que saia de casa até o mercadinho mais próximo para fazer as compras da semana, Roberval consultava as trancas de portas e janelas pelo menos umas vinte vezes, só para ter certeza que estavam bem fechadas. Testar a segurança do lar nunca é demais. Dizia ele. Há vagabundos por todo canto só esperando o momento certo para usurpar o bem alheio. Completava. E tinha ele um zelo pelas coisas que era fora do normal. Claro, ele tinha TOC.
Algumas vezes ele também passeava na pracinha quando o sol parecia mais ameno. Queimar a pele então nem pensar. Dava calafrios só de lembrar-se do couro saindo em tiras de seu corpo. Havia na praça um banquinho que era especial. E era o único que ele arriscava sentar, mas antes, como de praxe puxava um frasco com álcool e borrifava por todo o local.
Com o tempo Roberval se tornou ainda mais arredio. Talvez fosse acometido por um vazio existencial que se transformou em uma depressão. Mas Roberval não ficava um dia sem tomar banho e fazer a barba. Na verdade, eram seis banhos por dia. Se for pra morrer que seja limpinho, pensava. E este pensamento foi tomando conta de seu espírito todos os dias.
Numa manhã, despertando de seu leito cândido e de uma alvura impecável, puxou uma agenda de seu criado-mudo branquinho e imaculado para ler algumas anotações que fazia ao longo do mês. Ao ler tudo com a mesma parcimônia de um velho pároco, sentiu no peito um vazio ainda maior, pois sabia ele que tinha uma vida limitada devido aos seus acessos e excessos de frescura. Mas eu sou homem. Pensou consigo mesmo. Será que sou viado? Veio a dúvida atroz. Não! Não sou viado! Excluiu qualquer resquício deste pensamento quando pensou em algo que você leitor, deve estar pensando também. Jamais permitiria ser encouchado por outro homem. Deu três toques na madeira e isolou o pensamento funesto. Nisto, aquela vozinha perniciosa lhe cutucou o ouvido. Roberval, a tua vida é uma merda. O melhor que tens a fazer é sucumbir à própria morte. Lá do outro lado será melhor pra ti. Até preparamos uma túnica linda e branquinha para cobrir teu corpo. E você não precisa andar sobre a areia e a relva, pois vai flutuar feito os anjos.
Por um momento Roberval gostou da ideia. Principalmente na parte de flutuar sobre as impurezas que pudesse lhe tocar. Pensou mais um pouco e decidiu. Vou me matar. Isto mesmo, só a morte vai me libertar desta sujeira mundana. Não posso mais respirar este ar poluído que enegrece minha alma. Num salto saiu da cama para planejar melhor como tiraria a própria vida.
Foi para a cozinha e segurou a faca mais afiada que tinha na gaveta. Olhou para o chão limpinho sem nenhuma poeira e pensou. Isto vai fazer a maior sujeira. Largou a faca novamente na gaveta e procurou novas alternativas. Com uma corda comprida eu poderei alçar naquela madeira grossa e passar pelo meu pescoço. Num instante lembrou que tinha asma e poderia morrer sufocado. Seria uma morte tão trágica e boba. Hoje em dia caiu em desuso o enforcamento.
Sem saber o que fazer e como fazer, abriu a porta, atravessou a rua e foi até a farmácia do Tião. Embora tivesse um cheiro corrosivo de remédios misturado com perfumes, o local era bem conservado. Roberval pediu veneno para ratos. Este não tem mais. Disse o farmacêutico. Mas posso conseguir para você aquele veneno especial para matar cachorros, se este for o teu problema. Estes malditos cachorros não nos deixam dormir em paz à noite. Concluiu o farmacêutico mesmo sabendo que era proibido tal comércio. Não. Disse Roberval com a mais absoluta certeza. Não é para matar cachorro. É para outros fins, porém não vou querer este por ser forte demais. Preciso de algo mais delicado. Assim tão delicado não tenho aqui. Disse Tião com certa graça. Então me vê um frasco de álcool com borrifador. E Roberval saiu com o álcool na mão com a ideia fixa que acabaria com sua vida e também todo o sofrimento imposto pelo ambiente hostil.
Deixou a noite cair para finalmente pôr em prática seu plano. Levou consigo a agenda, uma vassoura, detergente e também o frasco de álcool que comprou na farmácia pela manhã. Andou poucas quadras e chegou ao local de sua morte. A torre de telefonia. Tinha duas. Escolheu a mais limpinha. Olhou para cima e quase lhe deu vertigem ao ver a escada íngreme que o levaria até o topo. Antes de subir calculou mais ou menos o alvo de sua queda e limpou cuidadosamente o local. Varreu, tirou o pó, fez uma barreira com o detergente para as formigas não invadirem e assim bolinar seu corpo e finalmente tomou a decisão de subir na droga daquela torre. Mas antes, como sempre, borrifou o álcool por tudo para espantar os insetos. E cada degrau que subia ia abrindo espaço com um pano e muito álcool para se livrar de toda àquela poeira. Chegou lá em cima e se agarrou na ferragem devido a altura. Viu toda a cidade que dormia naquele momento. As luzes o encantaram profundamente. Ao longe avistou o aterro sanitário e teve calafrios. Quis morrer logo para não ver mais aquilo em sua frente. Ainda que a noite limitasse a sua visão, podia ele ver tudo isto devido a lua cheia e a boa iluminação da cidade.
Antes de se jogar, quis ele rezar um Pai Nosso. A prece me levará direto para a túnica branquinha e de seda. Quando terminou a oração quis também fazer uma prece para Maria, mãe de Jesus. Não custa nada. Pensou. Depois disto abriu a agenda e quis escrever um pouco de sua história para que todos lessem. Talvez coloquem até no jornal, por isso devo caprichar. Primeiro devo deixar bem claro que não sou viado. Morrer com fama de viado sem o ser é muito humilhante. E Roberval, numa frescura incessante adiava a própria morte. Fez questão de sublinhar na última linha que não era viado, e sim tinha TOC.
E, antes de Roberval concluir ou não este plano, eu me despeço por aqui e finalizo este conto. A frescura de meu personagem é tanta que eu não tenho mais coragem de continuar escrevendo. Se algum dia ele decidir morrer ou viver como um homem, eu volto para finalizar a história.

Ritinha

Arantes consulta o relógio. Está ansioso. Fica neste estado quando precisa contar algo para o amigo Moacir. Anda de um lado a outro e vai até a porta. Olha para a rua com impaciência. Tomou uns dez cafezinhos nesta manhã. De repente o alívio.

- Moacir meu amigo! Enfim você chegou!

- O que há de tão importante assim. Indagou o amigo.

- Importante? Nem sabe da maior, é importantíssimo. Fiquei sabendo que é paulada!

- Paulada mesmo?

- Pauladíssima!

- O que está esperando. Conta logo Arantes.

- Espera. Deixa eu tomar mais um cafezinho. Esta eu vou apostar alto!

Arantes faz suspense. Não quer largar a notícia de primeira. Prepara o lead e busca a melhor maneira para contá-la. Engole a última gota de café e dispara.

- Sabe o que eu descobri da Ritinha, a secretária recatada da outra repartição?

- Aquela moça desajeitada que usa óculos de fundo de garrafa?

- Ela mesma.

- Estou curioso. Conta logo.

- Mas antes tens que topar a aposta.

- Sim, eu topo. Dependendo do que for, caso duzentas pratas.

- É de primeiríssima mão. Do próprio primo que presenciou o fato.

- Não enrola, conta logo!

- Perdeu a virgindade com uma long neck!

- Com uma long neck?

- Sim. Com uma long neck!

- Já sei, encheu a cara e adormeceu e um espertinho foi lá e enfiou a garrafinha.

- Nada disso meu amigo Moacir. Foi consciente mesmo. Disse o primo que num estado de excitação ardente ela vai até a geladeira se refrescar e ao ver a garrafinha com o gargalo geladinho piscando e a seduzindo, não deu outra. Foi paulada. Garrafa para um lado e cabaço para o outro.

- Conta outra. Isto é pura mentira, Arantes. Ela jamais teria coragem de fazer isto.

- É a pura verdade. Eu te falei que era paulada. É pauladíssima, Moacir.

- Duvido muito. Tenho certeza que o tal primo queria pegar a moça e não conseguiu, depois inventou esta para enxovalhar a reputação da pobrezinha.

- Quer apostar quantos desta vez?

- Trezentas pratas! Menos que isto nem entro na aposta.

- Feito. Trezentas pratas. Vou te provar que é tudo verdade. Mal posso ver esta grana toda em meu bolso. Só tem um entrave, Moacir, eu sou casado e muito bem casado e por este detalhe não poderei tirar a prova.

- E daí? Onde quer chegar com isso?

- E daí que não posso seduzir a coitada. É verdade que seria muito fácil, mas se minha mulher descobre estou ferrado.

- Ainda não entendi muito bem, você quer que eu tire a prova seduzindo a moça e a levando pra cama?

- Pense Moacir. Pense! Se não for assim como saberemos a verdade?

- Isso é canalhice.

- Canalhice é ficar espalhando mentira por aí. Além do mais, tem muita grana em jogo.

- Bom, se for mentira eu embolso trezentas pratas além de ter uma noite de amor com a moça sem pagar um tostão. Espero que nosso plano dê certo.

- Vai dar certo. Quem perde a virgindade com uma garrafa, transa com qualquer coisa.

- Obrigado pela gentileza, Arantes. Você sabe que eu tenho charme e não vai demorar muito para ter a prova que precisamos.

Depois do expediente Moacir muda o seu trajeto para passar por Ritinha. A viu de longe e diminuiu os passos para inventar uma conversa qualquer e assim iniciar uma aproximação. Considerou-se o pior dos canalhas devido a aposta e passou direto sem olhar para a moça. Parou num bebedouro, tomou uns dois copos de água e foi até ela. Sem titubear a convida para beber algo numa lanchonete da esquina. Ela sorri educadamente e aceita o convite.

De perto Ritinha era bem mais atraente. Tinha os seios fartos e um sorriso encantador. Apesar daqueles óculos e uma tiara de pano na cabeça, não tiravam o brilho que havia nos olhos dela.

Os encontros na lanchonete da esquina se arrastaram por cinco dias seguidos. Já havia total complacência ao ponto de Moacir a convidar para ir à casa dele num fim de semana qualquer. Ela aceitou com toda naturalidade e demonstrava nos gestos toda a sua delicadeza. Sou um canalha inescrupuloso. Pensava Moacir ao contemplar o doce sorriso de Ritinha.

No dia seguinte Moacir encontra Arantes e sentencia.

- Amanhã é paulada! Ela já está caidinha por mim e vamos ter um encontro mais íntimo.

- Sério? Paulada mesmo? Indagou Arantes.

- Pauladíssima meu amigo!

- E o que você vai fazer?

- Como assim o que eu vou fazer? Por acaso esqueceu como se faz? Simples, não posso perguntar aquilo senão pôr aquilo na mão. Entendeu agora?

- Entendi sim. E vai ser onde?

- Lá em casa. Ela aceitou meu convite sem titubear. Eu disse que tinha charme. É paulada!

- Não esquece que pra valer a aposta tem que arrancar a confissão e tudo deve ser devidamente gravado.

- Deixa comigo. Trouxe o gravador? Já separa também a grana que vou levar pra casa também.

- Não conte com vitória antes do tempo. Eu que vou embolsar trezentas pratas. O gravador está aqui.

No dia seguinte e na hora combinada Ritinha vai até o apartamento de Moacir. Estava com uma roupa mais adequada para a ocasião que a deixava até mais atraente, contrastando com uma bolsa de peles, mas muito simples. Desconfiada ele olha para os lados como se estivesse fazendo algo de errado por estar em frente à porta de um homem solteiro. Toca a campainha e Moacir abre a porta logo em seguida. Trocam cumprimentos com um beijo no rosto.

- Pensei que não viria mais. Disse Moacir demonstrando preocupação.

- Tenho palavra e cumpro com meus compromissos. Completou Ritinha afastando qualquer embaraço inicial.

- Desculpe, foi apenas um pensamento alto. Estou feliz de vê-la aqui. Quer beber algo?

- Sim. O que tens?

- Cerveja. Pode ser?

- Sim, pode ser.

- Sente e fique a vontade. Já volto.

Moacir vai até a cozinha e traz duas garrafinhas long necks, põe numa mesinha de vidro entre o sofá e a TV e segue com os olhos cada reação de Ritinha para ver se ela deixa no ar alguma pista. Ela não demonstra nenhuma reação e para surpresa também não demonstra nenhuma parcimônia ao segurar a garrafa, e fazia com total discrição que descartou qualquer possibilidade de o fato sentenciado por Arantes viesse a ser verdade.

Depois de algum tempo jogando conversa fora Ritinha interrompe o assunto e pergunta:

- Você é sempre assim?

- Assim como? Respondeu Moacir sem perceber o teor da pergunta.

- Sem atitude.

- Ainda não estou entendendo.

- Então vou ser breve. Vamos para a cama ou me convidou para vir aqui e perder tempo com conversas tolas?

Moacir ficou boquiaberto e por alguns segundos ficou estático sem saber o que dizer. Não esperava de uma mulher que demonstrasse um pudor quase que exagerado pudesse falar desta maneira. Os olhares se cruzam e ele balança a cabeça fazendo um sinal positivo.

Ritinha o agarra ali mesmo e dá um beijo úmido e quente. Estava no cio e crava as unhas nas costas de Moacir não o deixando se desvencilhar. Num instante ele tira a camisa e também a deixa com a parte de cima toda descoberta, apertando com lascívia os peitos fartos e macios de Ritinha. Os dois saem para o quarto e antes de consumar qualquer coisa, Moacir liga o pequeno gravador que já estava preparado embaixo da cama. Entre beijos, carícias e muito jogo de cintura, antes de ser penetrada Ritinha faz um pedido.

- Pegue a minha bolsa, por favor. A bolsa.

Muito excitado, Moacir se levanta e vai até a sala para atender ao pedido de Ritinha. Volta com a bolsa e entrega nas mãos dela. Talvez ela quisesse pegar camisinhas, afinal, sexo seguro é bem mais gostoso. Pensou ele. Ritinha pediu que abrisse e pegasse algo que estava ali dentro. Moacir põe a mão dentro da bolsa e para sua surpresa puxa uma garrafinha long neck. Ficou estupefato. Não sabia o que dizer e o que fazer. Enquanto isto Ritinha balbuciava num delírio.

- Vai, enfia esta garrafa todinha. Por favor, enfia. Dizia ela alucinada.

- A garrafa...? Perguntou Moacir desconcertado.

- Sim. Esta garrafa. Enfia logo esta maldita garrafa! Foi ela que tirou a minha virgindade e será ela que vai copular comigo para o resto de minha vida...

Depois deste dia Moacir nunca mais apostou trezentas pratas.

O título é um tanto sugestivo e não por acaso coloca o próprio autor longe de casa, à deriva que busca um terreno seguro para ancorar. Cansado por navegar e perceber que não há mais terras seguras, um lar. O ser humano quer direitos iguais a pretexto de agredir seu próximo. Este blog está marcado e saturado por contos irreais e ao mesmo tempo povoa não só o imaginário, é o próprio real forjado nas linhas que os compõem.

Disseram-me um dia que eu deveria falar de coisas reais, de coisas normais e compor os mais belos poemas para saudar a Criação. Pobres ingênuos, ou cegos, ou mentirosos. É exatamente isso que faço, colocar nas entrelinhas o que há tempos se tornou normal e convive lado a lado com toda loucura humana. Normal é a prostituição, o esvaziamento de si mesmo para dar lugar aos instintos mais perversos. Normais são os vícios e tudo aquilo que envolve a aura libertina, desregrada e compartilhada o que leva ao fundo do poço a alma mais perturbada. O normal de hoje é a transgressão moral, queimar as tábuas e tudo que foi nos deixado através da dor e sangue. O normal de hoje são os vínculos materiais, as bolhas e tudo que pode se acumular visualmente para que possa ser mensurado, cobiçado e amado. É normal ver as posições trocadas entre homens e mulheres e não poder dizer que não é natural sem ser censurado e taxado como um canalha preconceituoso. Tudo bem, direi que é normal, mas meu pensamento continuará na canalhice pois não posso abortar preceitos que aprendi com tantas gerações. Normal é ser normal, descarado, doutrinado e condutor de uma ordem que tão pouco desconhecem.

Enquanto isto, coisas anormais se tornam ainda mais escassas. O verdadeiro amor sem interesses, sem vilipêndios semânticos, o puro e simples de estar por estar. Longe se esvai o respeito ao próximo, os contratos voluntários o caminhar sem medo. E tudo fica distante e complicado demais para entendermos, pois o que era normal está morrendo e voltando para algum lugar para quem sabe, um dia voltar com mais força.